A Pedra de Sapo

   “Sweet the uses of adversity. Which, like the toad, ugly and venomous, Wears yet a precious jewel in his head”.

SHAKESPEARE. As You Like It (1623)






Redonda, lisa e de aspecto bulboso, a bufonite era uma pedra formada nas entranhas da cabeça de um sapo grande e velho. Da família dos bezoares, a pedra possuía diversas propriedades mágicas relacionadas à cura e fez muito sucesso durante a Idade Média e Renascimento. Como o sapo era considerado um animal extremamente venenoso e cheio de más intenções, ilustre familiar das bruxas e ingrediente indispensável de poções, a mais famosa dessas propriedades era a de ser um antídoto universal contra... venenos! Similia similibus curantur, coisas semelhantes curam-se com coisas semelhantes. Principio básico de magia.

Thomas Lupton, autor elisabetano de A Thousand Notable Things (1576), nos informa que o mero toque desta pedra no corpo do enfermo já seria suficiente para livrá-lo de toda dor e sofrimento:
“A Tode stone (called Crapandina) touching any part be venomed, hurte or stung by Ratte, Spider or Waspe, or any other venomous Beast, ceases the paine and swelling thereof”. LUPTON, 1576.
[Uma pedra-de-sapo (ou Crapandina), ao tocar qualquer membro envenenado, tenha sido ele mordido ou picado por rato, aranha ou vespa, ou por qualquer outro animal venenoso, elimina a dor e o inchaço decorrentes].

Outra característica marcante da bufonite, além de curar, era a de ser um potente alarme contra venenos. Segundo os especialistas, quando colocada em presença de um cálice envenenado, por exemplo, a pedra começaria a esquentar, a suar ou mesmo mudaria sua cor. Uma propriedade que vinha muito a calhar, principalmente se você fosse convidado a cear na corte do papa Borja, em Roma, ou passar uma temporada na Versalhes de Luis XIV. Em uma época onde o passatempo preferido das pessoas era escorregar veneno na comida dos outros, a pedra tornou-se uma joia muito cobiçada, sendo confeccionada na forma de anéis - e poderia chegar a custar uma fortuna.

Um anel de bufonite - British Museum


O problema era extrair a pedra. Como mencionado, ela era gerada dentro da cabeça dos velhos batráquios. Contudo, o uso de facas e bisturis estava simplesmente fora de questão - ou você achou que seria óbvio e fácil assim? Não, não, não. Diversos manuais práticos ao estilo faça-você-mesmo foram escritos com o objetivo de auxiliar o leitor médio neste assunto. Um deles foi elaborado pelo próprio Lupton, em um passo-a-passo divertido para toda a família. Anote a receita:

Ingredientes
1 sapo morto, grande e velho;
1 pote de barro;
1 formigueiro.
Modo de fazer

Coloque o animal dentro do pote de barro (earthen potte) e cubra-o com um pouco de terra. Em seguida, deixe o pote perto de um formigueiro (Ante hyllocke) por alguns dias ou semanas. Passado este tempo, espera-se que as formigas tenham comido toda a carne do sapo e deixado apenas os ossos com a valiosa pedra dentro deles. Pronto! Você tem em mãos um potente alívio contra venenos e até - dizem - contra a temida bile negra!

É bem que se diga, tal método não foi criado por Lupton. Já na Antiguidade os sapos despertavam interesse entre os homens e mulheres de saber. Plínio, o Velho, dedica um trecho de sua Naturallis Historia às propriedades protetoras e encantatórias de dois ossinhos minúsculos encontrados nos sapos, usados comumente como amuletos. Ele só se ~esquece~ de mencionar quais ossinhos são esses, mas ok, detalhes. De acordo com Plínio, o método do formigueiro era o modo mais seguro de obtê-los.


Tudo muito bonito. Mas podemos imaginar o quão desapontadas as pessoas ficavam quando abriam seus potes de barro e nada encontravam além de um... han... esqueleto nojento, parcialmente raspado por formigas. E, apesar dos fracassos, curiosamente, este continuou a ser o método mais repetido e replicado nos manuais para se conseguir uma pedra.

Talvez motivado pelo disparate entre teoria e prática, o "naturalista" (eu sinceramente não sei como chamá-lo) Edward Topsell entrou em cena com um método alternativo. Para ele, o fracasso provinha de um simples detalhe biológico. A pedra deveria ser retirada da cabeça do sapo com o animal ainda vivo, e não depois de morto! A lógica, meus senhores? Não me venham perguntar de lógica aqui! E qual foi a melhor forma que Topsell encontrou de fazer isso? Bem, deixemos que ele mesmo conte.

A técnica inovadora de Topsell está em The History of Serpents, de 1608, um compêndio que reúne descrições de diversos tipos de cobras, monstros marinhos e até dragões. E, por algum motivo, o sapo está inserido aí no meio:


"A Arte (como eles a denominam) é precisamente o modo de extraí-la, pois é dito que se deve remover a pedra do sapo com o animal ainda vivo, usando um pedaço de tecido de cor vermelho escarlate, cor que deleita muito a esses animais, tanto que eles se esticam em direção ao pano, como se quisessem brincar com ele. Eles lançam a pedra para fora da cabeça, mas imediatamente a engolem de volta, a não ser que ela seja tomada deles através de um buraco secreto no tecido [...]". TOPSELL, 1608.

Interessante, não? Principalmente a notícia de que os sapos gostavam muito de tecidos vermelhos, um luxo com o qual nem todos podiam arcar na época. Tecidos coloridos (em especial o púrpura) eram caros. Quanto ao sucesso deste método em relação ao outro, bem... não temos muitas informações. O que sabemos é que a fama e o comércio da pedra perduraram ainda por muito tempo.

Obviamente, nem todos eram crédulos sobre os poderes da bufonite, não importa o que a "ciência teórica" da época afirmasse. Casos houve em que a eficácia da pedra quis ser submetida à prova empírica, causando algumas desgraças. Conta-se o episódio de um francês do século XVI, Ambroise Paré, pioneiro na arte da cirurgia, que resolveu fazer uma demonstração pública para a corte do rei Carlos IX de França. Paré aparentemente não acreditava nos poderes da pedra. Ou, se acreditava, queria prová-los. Para sua demonstração, o cirurgião envenenou um condenado à forca o melhor que pôde (haviam lhe prometido a liberdade caso a cura se realizasse) e, na frente do rei, administrou a pedra ao doente, como prescreviam os manuais (vide figura abaixo). Resultado: o pobre homem agonizou terrivelmente por sete horas antes de estrebuchar pela última vez. O cirurgião provou seu ponto.

Hortus Sanitatis, 1491



Mas é só a partir do século XVII, com a revolução científica, que os estudiosos passaram a olhar com real ceticismo para os poderes mágicos da pedra-de-sapo, debruçando-se seriamente sobre sua composição e origem verdadeiras. Em 1646, sir Thomas Browne indicou pela primeira vez o caminho para elucidar o mistério, sugerindo que as bufonites seriam nada mais do que dentes de um peixe conhecido como lupus-marinus (peixe-lobo, um peixe que habita as águas geladas do Atlântico e possui dentes muito fortes). De acordo com a teoria de Browne, os dentes desse animal eram submetidos a um processo de arredondamento artificial até assumirem a forma comercializada da pedra. Browne chegou perto, muito perto!

Hoje, a ciência sabe que as pedras comercializadas com o nome de bufonites (ou stelliones, ou crapandinas) eram sim dentes de um peixe, mas de um peixe pré-histórico! Fósseis de Lepidotus sp. eram encontrados às fartas nas costas europeias, notadamente as inglesas. O peixe vivieu durante o Jurássico e Cretáceo, para quem gosta de tais informações. Talvez por conta de sua aparência bulbosa, semelhante às verrugas da pele dos sapos, os medievos associaram os fósseis a esses anfíbios.


Fóssil de Lepidotus sp.




Post Scriptum:

Os bruxos ainda hoje usam a pedra-de-sapo em suas poções. Na verdade, ela pode ser encontrada em qualquer apothecário, a preços razoáveis (se você souber aonde ir). É engraçada toda esta peripécia dos não-bruxos para desvendar nossos segredos. Sendo incapazes, recorriam a falsificações extravagantes. A verdadeira pedra é de fato obtida de um sapo, criado como um familiar (e com muito conforto, diga-se, como todos os nossos familiares). No momento da extração, a única coisa necessária de se fazer é... pasmem... PEDIR! Ora, não somos trogloditas. Com o devido tato e boa educação consegue-se verdadeiros milagres, minha gente.


Fonte das informações apresentadas:
Hypnogoria, um blog que recomendo muito aos amantes do macabro.

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